5 de janeiro de 2012

Ensino Religioso Laico - existe?


Recentemente, Matheus Maestri David, aluno do curso de Ciências da Religião da Universidade de São José, conduziu, sob orientação do Prof. Dr. Sérgio Luiz Ferreira, uma pesquisa para compreender o posicionamento dos "sem-religião" quanto ao Ensino Religioso nas escolas públicas. Para isso, o pesquisador se propôs a entrevistar membros da ATEA (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos), da qual faço parte. O resultado da pesquisa, bem a grosso modo, revela que mesmo entre os denominados "sem-religião" (que já somam 7,5% da população brasileira), não há um consenso quanto ao tema, ainda que haja uma forte tendência de oposição, como seria de se esperar (85% dos entrevistados se declaram contrários ao Ensino Religioso, o que não significa, porém, uniformidade de pensamento, já que os motivos dessa oposição são bem diversos).
Faço parte dos 15% que apoiam o Ensino Religioso, mas essa afirmação merece uma série de ressalvas. Em primeiro lugar, o texto original da LDB (de 1996), em seu artigo 33, representou um retrocesso em relação à Constituição Federal de 1988, porque entregava a responsabilidade pelo Ensino Religioso às autoridades eclesiásticas e porque "rezava" que o dito ensino seria oferecido "sem ônus para os cofres públicos". Dessa maneira, e deixando aberta a possibilidade para um ensino "confessional ou interconfessional", quem decidia seu caráter era quem arcava com os custos, ou seja, as instituições religiosas. Isso significava abrir um espaço para o proselitismo numa instituição pública, em franca contradição com o princípio constitucional que veda ao poder público subvencionar cultos religiosos (art. 19). O texto, felizmente, foi substancialmente alterado já no ano seguinte pela Lei 9.475/97 (foi a primeira alteração que ele sofreu). A exigência de não onerar os cofres públicos desapareceu, e foi "assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil" e "vedadas quaisquer formas de proselitismo". Essa já me parece uma ideia mais interessante, desde que fosse conduzida por profissionais isentos e imparciais, estudiosos da religião enquanto fenômeno cultural, professores laicos com formação em filosofia, sociologia ou história, pois só assim seria possível afastar a possibilidade de proselitismo. Nada disso, claro, é suficiente para assegurar que o professor da dita disciplina não vá dar destaque à sua crença pessoal, mas penso que mais grave que isso é a falta de um currículo com conteúdos bem estabelecidos e voltados para a pluralidade religiosa e ao respeito à diversidade e à liberdade de pensamento. O Conselho de Direitos Humanos da ONU criticou o Brasil, no ano passado, por permitir o Ensino Religioso nas escolas públicas, e pediu para que o material utilizado fosse analisado por especialistas.
O tema é delicado, e é preciso cuidado para não cairmos no equívoco estadunidense de transformar a escola pública num templo do criacionismo (lembrando que a terceira colocada nas nossas últimas eleições presidenciais, com número expressivo de votos, defendia o ensino do criacionismo nas escolas quando ainda era ministra do Meio Ambiente...). Nada contra a que se debata o criacionismo e o design inteligente na escola, desde que isso seja feito do ponto de vista científico, dentro das aulas apropriadas para isso, e não no âmbito do Ensino Religioso.
Que fique bem entendido: defendo um Ensino Religioso que se atenha estritamente ao estudo da história das instituições e das ideias religiosas, que abarcasse o maior número possível de religiões, centrado essencialmente na defesa da tolerância religiosa, e livre de qualquer espécie de dogmatismo ou de proselitismo (mesmo ateu, é claro, embora haja boas razões para supor que esse tipo de ensino tenderia a conduzir ao ateísmo ou ao agnosticismo, posições filosóficas mais condizentes com o pensamento científico. Até porque, como escreveu Issac Asimov, "a Bíblia, quando lida apropriadamente, é a força mais potente para o ateísmo já concebida"...). Um "Ensino Religioso laico", se é que isso possa efetivamente existir (já discutimos isso aqui), deveria ter o mesmo impacto que uma Educação Sexual voltada para a tolerância com as diversas orientações sexuais (o que é bem diferente de "seduzir" os alunos para uma ou outra "opção", como os detratores desse tipo de ensino insistem em entendê-lo). Por isso penso que um grande passo em direção a um Ensino Religioso como proponho esteja na elaboração de materiais didáticos de qualidade e, evidentemente, pautados pelos princípios éticos e didáticos a que me referi.
Recentemente tomei conhecimento de um que merece ser citado. Embora não trate de história das religiões, aborda os diferentes posicionamentos possíveis diante da ideia da existência de deus (partindo do monoteísmo e do politeísmo, passando pelo deísmo, pelo panteísmo, pelo agnosticismo, pelo ateísmo, e chegando até as diversas formas de misoteísmo). Em uma linguagem simples, os temas são desenvolvidos ao longo de uma narrativa em poucos capítulos, bem no estilo O Mundo de Sofia ou A Viagem de Théo (esse sim que abarca a história das religiões, e pode ser outro grande trunfo do professor de Ensino Religioso). Falo do livro O Deus de Cada Pessoa, de Sadat Gonçalves, que pode ser lido integralmente no portal da editora Bookess, e baixado por apenas R$ 2,00. Fica aí a dica para quem quiser se dedicar a essa nobre missão de abrir algumas mentes.

A propósito, é conveniente lembrar que aguarda parecer na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) uma Proposta de Emenda Constitucional que dá direito às associações religiosas de propor ações de inconstitucionalidade ou declaratórias de constitucionalidade de leis ou atos normativos. A PEC 099/2011, de autoria de João Campos (PSDB-GO) é outra agressão fundamentalista ao Estado Laico. Convido os leitores a aderirem ao abaixo-assinado contra a PEC em questão.

7 comentários:

Sadat disse...

Obrigado pela menção ao meu livro, caro Mauro. É uma honra.
E dou meu apoio à causa. Ensino religioso deve promover a tolerância e diversidade, assim como a educação sexual.

Matheus Maestri David disse...

Olá Mauro, primeiramente quero lhe agradecer pela menção ao meu artigo. Fico feliz de saber que o artigo já está sendo usado para o debate, e isso é muito importante.

Sobre sua postagem gostaria de dizer que concordo com muita coisa que você escreveu, principalmente na parte aonde você fala que o Ensino Religioso deve promover o diálogo para todos os tipos de crença ( e não crença).Porém, penso que a escola deve ser o lugar mais isento de proselitismo possível, inclusive no que diz respeito a ciência, pois o aluno deve saber que existe uma teoria científica da criação do mundo, e também deve saber sim que existem outras teorias da criação do mesmo, sejam elas, religiosas, filosóficas, entre outras.

O que quero dizer com isso, é que a escola é espaço para conhecimento, e conhecimento bem transmitido (sem proselitismo) nunca é de mais, todos os lados devem ter seus espaços.

Para maior entendimento do que quero dizer, deixo abaixo o link de uma postagem que fiz no meu blog.

Espero ter colaborado!

Universidades públicas aderiram ao proselitismo?

http://david-m-m.blogspot.com/2011/10/universidades-publicas-aderiram-ao.html

Mauro Bartolomeu disse...

Concordo com você, David, pois o conhecimento científico é geralmente transmitido como se fosse uma certeza absoluta, quando sabemos que o espírito científico exige justamente o oposto dessa atitude. Se pretendemos formar espíritos científicos, temos em primeiro lugar que educar para a convivência com a dúvida, e para o seu exercício sistemático.
Concordo também que o aluno deva poder tomar conhecimento das diversas teorias acerca da origem do universo, mas isso não significa colocar em pé de igualdade ideias científicas e religiosas (você se refere a “teorias” religiosas, mas chamá-las de teorias, com todo o respeito, é um verdadeiro insulto à ciência). Você por acaso está sugerindo que, em nome da “maior isenção de proselitismo possível”, as ideias científicas não devam ter na escola privilégio sobre os dogmas religiosos? Isso me parece um contrassenso, pois a função primordial da escola é difundir o pensamento científico. Por isso penso que a religião possa ser estudada, cientificamente, isto é, como objeto de estudo, e não serem aplicadas como doutrina! Como diz Asimov, por acaso as instituições religiosas também abrirão espaço para a divulgação do evolucionismo??
Quanto ao seu artigo, estranha-me que você, que defende justamente essa pluralidade, tenha considerado absurda a abertura de espaço para pensadores como Marx ou Keynes, proposta pelo ministro argentino. A ciência, tal como a entendemos com Popper, não é feita de certezas absolutas, mas de modelos refutáveis, que são considerados provisoriamente válidos até que apareçam evidências em contrário. Assim, há diversas teorias concorrentes, em todos os ramos do conhecimento, e é próprio da história da ciência que umas sejam mais aceitas que outras em determinados momentos. Se a tese intervencionista de Keynes é retomada agora, é porque apareceram evidências de que o liberalismo de Adam Smith conduz a crises sistêmicas, não concorda?

Matheus Maestri David disse...

Seguinte Mauro, peço desculpas se meus escritos não ficaram muito claros. Mas basicamente o que penso é que a escola é espaço para gerar idéias e produzir conhecimentos, e que nenhum tipo de conhecimento deve ser restrito dos educandos. Quanto as teorias criacionistas, penso que devem ter espaço na escola sim; Agora, com certeza a aula deve ser ministrada com pessoas isentas do proselitismo - nesse caso incluo o professor de Ensino Religioso, formado em Ciências da Religião -.
No geral o que me parece é que a maioria dos seres humanos não conseguem chegar como dizia platão, a Virtude, ou seja, sempre pendem para um lado, e a escola em um âmbito geral me parece que segue o mesmo caminho.
Por fim me expresso dizendo que na edução escolar todas as teorias devem ter seus espaços, nem mais de uma e nem mais de outra, pois só assim o educando conhecera todo o conhecimento produzido ao longo dos anos pela humanidade, e somente assim, repito, somente assim, ele poderá encontrar o caminho que queira trilhar.

Mauro Bartolomeu disse...

David, estamos de acordo quanto a que os alunos têm direito ao ensino mais amplo possível, científico e cultural, nunca doutrinatório. Porém, dar mais peso a uma ou outra teoria não é fazer proselitismo; é um direito do professor manifestar suas próprias opiniões (seguindo Paulo Freire, é mais do que isso, é um dever do professor situar-se "politicamente", isto é, não escamotear suas convicções pessoais). Eu nunca escondi dos meus alunos que sou ateu, e nunca me furtei ao debate, quando eles mesmos o propõem. É um direito meu afirmar minhas convicções, e um direito deles conhecê-las e questioná-las.

Quanto ao que você chama de “teorias criacionistas”, não vejo porque não serem apresentadas e discutidas dentro do programa de Ciências e de Biologia, já que elas se pretendem científicas (na verdade, as questões levantadas por elas são legítimas, as respostas é que não têm nada de científicas). Sou absolutamente contrário a que se ensinem “teorias” da criação do universo no âmbito do Ensino Religioso, porque a religião não está mais habilitada que a ciência para tratar desse tema. Caberia ao Ensino Religioso apenas comparar os mais diversos mitos da criação, e estudá-los enquanto mitos, nunca como explicações alternativas para as teorias científicas. Parece-me que é justamente a facilidade com que essas visões podem ser confundidas o que faz com que os defensores do estado laico repudiem o Ensino Religioso.

Matheus Maestri David disse...

Chegamos a um denominador comum Mauro... ...Ótimo debate!!! Até um próximo momento!!!

Mauro Bartolomeu disse...

Para alimentar o debate: Depois de sua filha receber uma Bíblia na escola, bruxa protesta para que escolas distribuam livro de feitiços.