1 de maio de 2012

O engodo das “cotas raciais”

Caros leitores desse blog, permitam-me fazer-lhes uma pergunta um tanto quanto capciosa: por que é que se considera justo, afinal, que nos concursos públicos um concorrente com um título de mestrado ou de doutorado tenha automaticamente uma pontuação maior que a de um concorrente sem um título desses? Naturalmente, seria de se esperar que um mestre ou um doutor em determinada área obtivesse uma maior pontuação em uma prova objetiva do que um simples graduado; afinal, isso não seria mais do que a obrigação dele, não concordam? Então, simplesmente não faz sentido que um concorrente recém-graduado seja preterido por um mestre ou um doutor, mesmo tendo se destacado mais que este numa prova objetiva! Parece-me bastante evidente que um concorrente com titulação inferior que atinge uma pontuação mais alta na prova é duplamente mais competente que o concorrente com titulação superior.

A resposta banal a esse paradoxo é a de que o Estado pretende “valorizar” os profissionais “mais qualificados”. Mas qual será a vantagem para a sociedade na contratação, para o serviço público, de pós-graduados menos competentes que profissionais que apenas possuem a graduação? Isso é simplesmente um contrassenso! Sem dúvida é desejável que o setor público selecione os melhores profissionais, e que os quadros públicos estejam repletos de mestres e doutores em suas áreas de atuação, desde que, é claro, os programas de pós-graduação pelos quais eles tenham passado tenham efetivamente lhes acrescentado alguma bagagem cultural. Mas para que os melhores dentre eles sejam selecionados, o que o Estado deveria oferecer é melhores salários, pois isso sim atrairia os melhores profissionais, e não apenas “facilitar” a entrada de mestres e doutores para o preenchimento de vagas em cargos pouco atrativos. Assim, os profissionais mais bem qualificados continuarão na iniciativa privada, pois não é a “facilidade” de passar num concurso o que os atrairá para o setor público, em que as condições de trabalho são precárias; ao passo que os menos competentes tenderão a ser selecionados nesses concursos, em detrimento de profissionais com uma graduação mais sólida, mas com titulação inferior. Faço essa consideração como mero exercício de lógica, e não, como muitos podem pensar, por algum rancor de injustiçado (ao contrário, há pouco mais de um mês obtive a primeira colocação no processo seletivo para professor na rede municipal da minha cidade, graças, em parte, ao meu recentemente obtido título de mestre, mas nem por isso considero “justo” esse sistema).

Se, portanto, esse sistema de seleção não é interessante para a sociedade, por que o poder público continua fazendo uso dele? A resposta é simples: porque, dessa forma, o Estado se exime de melhorar as condições de trabalho do funcionarismo público, sem deixar de aparentar que “valoriza” a qualificação profissional. Uma valorização de fachada, portanto, e nada mais.

Pois bem, aos que me acompanharam até aqui cabe explicar por que chamei de “capciosa” a pergunta do primeiro parágrafo. A razão é que, se aplicarmos a mesma lógica ao famigerado sistema de “cotas raciais” para ingresso no ensino superior, cuja constitucionalidade foi aprovada pelo Supremo na semana passada, chegaremos a uma conclusão semelhante.

Não vou nem sequer entrar na questão da “cientificidade” do conceito de raça, já que nesse caso o conceito pertence mais propriamente à terminologia jurídica do que à biológica. E, antes que me julguem mal, sou plenamente favorável a “ações afirmativas” por parte do Estado a fim de diminuir as condições iniciais de desigualdade social, e entendo que as tais “cotas raciais” se inserem no campo mais amplo das “cotas sociais”. Sem dúvida, as cotas fundamentadas em critérios estritamente sócio-econômicos constituiriam uma “ação afirmativa” muito mais efetiva na diminuição da desigualdade social do que as cotas “raciais”, já que estas apenas podem, no máximo, ajudar a mudar a “cor” das classes sociais, mas não terão nenhum efeito na emancipação das mais baixas na escala econômica. Mesmo assim, qualquer espécie de cota redunda na confissão, por parte do Estado, de que ele não é capaz de assegurar condições iniciais de igualdade para todos (no caso específico, uma educação de qualidade).

E esse não é o maior problema. Se o Estado reconhece sua incompetência e toma medidas paliativas na tentativa de contrabalançá-la, isso ainda seria um avanço, no final das contas. O verdadeiro xis da questão é que o simples acesso a uma vaga na universidade não garante a manutenção do aluno de baixa renda nela. A única ação afirmativa realmente eficaz para isso seria a assistência aos ingressantes de baixa renda, na forma de bolsas, alojamentos e auxílios diversos, como custeio dos seus gastos com alimentação, transporte ou materiais didáticos. A concessão de um maior número de bolsas de estudo exclusivas para alunos de baixa renda seria um incentivo real para os alunos de escolas públicas a se aplicarem mais nos estudos, o que, por si só, já representaria um avanço de grandes proporções na qualidade geral do ensino público. Isso teria, um impacto muito maior na qualidade da educação básica do que qualquer sistema de cotas, e sem o risco de “nivelar por baixo” a qualidade do ensino superior. Além, é claro, de trazer os mesmos possíveis benefícios sociais das tais cotas. Da mesma forma que no caso dos concursos públicos, portanto, o Estado, com o oferecimento dessas cotas, apenas se exime de sua verdadeira responsabilidade, sem deixar de aparentar que se preocupa com os desfavorecidos de um sistema econômico excludente que ele próprio alimenta. Portanto, não vejo razão alguma para festejar a decisão do STF.


4 comentários:

Matheus Maestri David disse...

Sabe Mauro! Exatamente semana passada tivemos uma discussão em uma aula da minha graduação sobre o sistema de cotas! E lá pelas tantas, coloquei meu ponto de vista, que de certa forma é muito parecido com o que você trouxe, ou seja, eu coloquei minha posição afirmando que "cota" por "cota" não resolve, acho interessante que existam as cotas, mais somente da forma com que está posta não basta. Simplesmente o Estado deve levar mais a sério essa questão, e continuar em uma busca para a solução dessa desigualdade de raças e classes. Todavia, sabemos que o governo em sua maioria somente pinta a casa, mas por dentro deixa os móveis todos podres.

Abraços! Muito boa postagem!

Mauro Bartolomeu disse...

É, as cotas não são solução. Seriam pelo menos um paliativo? É complicado. Por um lado, aumentar o número de negros nas faculdades pode dar maior visibilidade ao movimento negro, e contribuir para a diminuição do preconceito. Por outro lado, o simples fato de serem cotistas pode ter o efeito contrário, e pior ainda se eles se revelarem maus alunos ou maus profissionais no futuro. Claro que eles sabem disso, e provavelmente por isso mesmo tendem a se dedicar mais. Não sei, o código eleitoral agora exige que no mínimo 30% das vagas a cargos eletivos sejam preenchidas por mulheres; isso dá mais visibilidade às mulheres no cenário político, mas na maioria das vezes o que vemos são candidaturas meramente nominais, só para preencher vagas e permitir que as coligações tenham mais candidatos masculinos... Ou seja, acaba reforçando a ideia de que "lugar de mulher" não é na vida política. Veja que estamos falando na visibilidade do determinados grupos na sociedade, não em diminuição da desigualdade social, porque o impacto nesse sentido é praticamente nulo. As cotas estritamente sociais já teriam um impacto ínfimo. Diminuição da desigualdade passa necessariamente por políticas públicas de amplo alcance, como educação básica de qualidade, diminuição do desemprego etc. etc. Se bastasse selecionar alguns pobres e fazê-los ascender na escala social, a Megassena já teria acabado com o problema...

Mauro Bartolomeu disse...

Poucos dias depois dessa postagem, o Pirulla também fez um vídeo sobre o assunto, que só descobri hoje, e que recomendo: http://www.youtube.com/watch?v=63qUsDiywqg

Mauro Bartolomeu disse...

E agora é a vez do Paulo Ghiraldelli apresentar o único argumento defensável a favor das cotas raciais: o da visibilidade do negro na sociedade, como eu já disse aí em cima. Assistam: http://www.youtube.com/watch?v=eWEr5WNu-I0.