A resposta banal
a esse paradoxo é a de que o Estado pretende “valorizar” os profissionais “mais
qualificados”. Mas qual será a vantagem para a sociedade na contratação, para o serviço público, de pós-graduados menos competentes que profissionais que apenas possuem a
graduação? Isso é simplesmente um contrassenso! Sem dúvida é desejável que o
setor público selecione os melhores profissionais, e que os quadros públicos
estejam repletos de mestres e doutores em suas áreas de atuação, desde que, é
claro, os programas de pós-graduação pelos quais eles tenham passado tenham efetivamente
lhes acrescentado alguma bagagem cultural. Mas para que os melhores dentre eles
sejam selecionados, o que o Estado deveria oferecer é melhores salários, pois
isso sim atrairia os melhores profissionais, e não apenas “facilitar” a entrada
de mestres e doutores para o preenchimento de vagas em cargos pouco atrativos.
Assim, os profissionais mais bem qualificados continuarão na iniciativa
privada, pois não é a “facilidade” de passar num concurso o que os atrairá para
o setor público, em que as condições de trabalho são precárias; ao passo que os
menos competentes tenderão a ser selecionados nesses concursos, em detrimento
de profissionais com uma graduação mais sólida, mas com titulação inferior. Faço
essa consideração como mero exercício de lógica, e não, como muitos podem
pensar, por algum rancor de injustiçado (ao contrário, há pouco mais de um mês
obtive a primeira colocação no processo seletivo para professor na rede municipal
da minha cidade, graças, em parte, ao meu recentemente obtido título de mestre,
mas nem por isso considero “justo” esse sistema).
Se, portanto,
esse sistema de seleção não é interessante para a sociedade, por que o poder
público continua fazendo uso dele? A resposta é simples: porque, dessa forma, o
Estado se exime de melhorar as condições de trabalho do funcionarismo público,
sem deixar de aparentar que “valoriza” a qualificação profissional. Uma
valorização de fachada, portanto, e nada mais.
Pois bem, aos
que me acompanharam até aqui cabe explicar por que chamei de “capciosa” a pergunta
do primeiro parágrafo. A razão é que, se aplicarmos a mesma lógica ao
famigerado sistema de “cotas raciais” para ingresso no ensino superior, cuja
constitucionalidade foi aprovada pelo Supremo na semana passada, chegaremos a
uma conclusão semelhante.
Não vou nem
sequer entrar na questão da “cientificidade” do conceito de raça, já que nesse
caso o conceito pertence mais propriamente à terminologia jurídica do que à
biológica. E, antes que me julguem mal, sou plenamente favorável a “ações
afirmativas” por parte do Estado a fim de diminuir as condições iniciais de
desigualdade social, e entendo que as tais “cotas raciais” se inserem no campo
mais amplo das “cotas sociais”. Sem dúvida, as cotas fundamentadas em critérios
estritamente sócio-econômicos constituiriam uma “ação afirmativa” muito mais
efetiva na diminuição da desigualdade social do que as cotas “raciais”, já que estas
apenas podem, no máximo, ajudar a mudar a “cor” das classes sociais, mas não terão
nenhum efeito na emancipação das mais baixas na escala econômica. Mesmo assim, qualquer
espécie de cota redunda na confissão, por parte do Estado, de que ele não é
capaz de assegurar condições iniciais de igualdade para todos (no caso específico, uma educação de qualidade).
E esse não é
o maior problema. Se o Estado reconhece sua incompetência e toma medidas paliativas na tentativa de contrabalançá-la, isso ainda seria um avanço, no final das contas. O verdadeiro xis da questão é que o simples acesso a uma vaga
na universidade não garante a manutenção do aluno de baixa renda nela. A única ação
afirmativa realmente eficaz para isso seria a assistência aos ingressantes de
baixa renda, na forma de bolsas, alojamentos e auxílios diversos, como custeio
dos seus gastos com alimentação, transporte ou materiais didáticos. A concessão
de um maior número de bolsas de estudo exclusivas
para alunos de baixa renda seria um incentivo real para os alunos de
escolas públicas a se aplicarem mais nos estudos, o que, por si só, já representaria
um avanço de grandes proporções na qualidade geral do ensino público. Isso
teria, um impacto muito maior na qualidade da educação básica do que qualquer sistema
de cotas, e sem o risco de “nivelar por baixo” a qualidade do ensino superior. Além, é claro, de trazer os mesmos possíveis benefícios sociais das tais cotas. Da
mesma forma que no caso dos concursos públicos, portanto, o Estado, com o
oferecimento dessas cotas, apenas se exime de sua verdadeira responsabilidade, sem
deixar de aparentar que se preocupa com os desfavorecidos de um sistema econômico
excludente que ele próprio alimenta. Portanto, não vejo razão alguma para festejar a decisão do STF.
4 comentários:
Sabe Mauro! Exatamente semana passada tivemos uma discussão em uma aula da minha graduação sobre o sistema de cotas! E lá pelas tantas, coloquei meu ponto de vista, que de certa forma é muito parecido com o que você trouxe, ou seja, eu coloquei minha posição afirmando que "cota" por "cota" não resolve, acho interessante que existam as cotas, mais somente da forma com que está posta não basta. Simplesmente o Estado deve levar mais a sério essa questão, e continuar em uma busca para a solução dessa desigualdade de raças e classes. Todavia, sabemos que o governo em sua maioria somente pinta a casa, mas por dentro deixa os móveis todos podres.
Abraços! Muito boa postagem!
É, as cotas não são solução. Seriam pelo menos um paliativo? É complicado. Por um lado, aumentar o número de negros nas faculdades pode dar maior visibilidade ao movimento negro, e contribuir para a diminuição do preconceito. Por outro lado, o simples fato de serem cotistas pode ter o efeito contrário, e pior ainda se eles se revelarem maus alunos ou maus profissionais no futuro. Claro que eles sabem disso, e provavelmente por isso mesmo tendem a se dedicar mais. Não sei, o código eleitoral agora exige que no mínimo 30% das vagas a cargos eletivos sejam preenchidas por mulheres; isso dá mais visibilidade às mulheres no cenário político, mas na maioria das vezes o que vemos são candidaturas meramente nominais, só para preencher vagas e permitir que as coligações tenham mais candidatos masculinos... Ou seja, acaba reforçando a ideia de que "lugar de mulher" não é na vida política. Veja que estamos falando na visibilidade do determinados grupos na sociedade, não em diminuição da desigualdade social, porque o impacto nesse sentido é praticamente nulo. As cotas estritamente sociais já teriam um impacto ínfimo. Diminuição da desigualdade passa necessariamente por políticas públicas de amplo alcance, como educação básica de qualidade, diminuição do desemprego etc. etc. Se bastasse selecionar alguns pobres e fazê-los ascender na escala social, a Megassena já teria acabado com o problema...
Poucos dias depois dessa postagem, o Pirulla também fez um vídeo sobre o assunto, que só descobri hoje, e que recomendo: http://www.youtube.com/watch?v=63qUsDiywqg
E agora é a vez do Paulo Ghiraldelli apresentar o único argumento defensável a favor das cotas raciais: o da visibilidade do negro na sociedade, como eu já disse aí em cima. Assistam: http://www.youtube.com/watch?v=eWEr5WNu-I0.
Postar um comentário