Por Suzana Vier, Rede Brasil Atual
Para a professora de sociologia da Universidade de São Paulo
(USP) Liana de Paula, o sistema de garantia de direitos da criança e do
adolescente brasileiro ainda tem de avançar muito na área preventiva. No
Brasil, as ações socioeducativas, destinadas à ressocialização do adolescente
que cometeu ato infracional, têm mais visibilidade que as preventivas. “A ideia
da intervenção depois é muito mais presente no planejamento e execução do que a
política preventiva”, disse.
Liana estudou durante dois anos o atendimento socioeducativo
a jovens em liberdade assistida – uma das medidas socioeducativas destinada a
menores que cometeram atos infracionais – e constatou que falta integração
entre políticas públicas e governos.
Em sua tese de doutorado “Liberdade assistida: punição e
cidadania na cidade de São Paulo”, a pesquisadora aponta que os jovens também
sofrem com a responsabilização por seu futuro e em discussões que se preocupam
em aumentar punições, mas não se atêm à violação de direitos básicos como saúde,
educação, moradia e emprego. “Quando esses meninos chegam ao sistema
socioeducativo eles já estão numa situação de violação de direitos deles...”,
afirmou. “Muitos dos adolescentes que estão em medida enfrentam em seu dia a
dia desafios muito complexos, imensos, que são questões sociais, não
individuais. E o tempo todo é demandado deles que resolvam essas contradições
de forma individual, não como grupo, não na dimensão política, onde seria de
fato possível resolvê-las, mas ali no seu cotidiano.”
RBA - A senhora
identificou durante sua pesquisa que a recuperação dos menores infratores tem
mais visibilidade que a prevenção.
Quando esses meninos chegam ao sistema socioeducativo eles já
estão numa situação de violação de direitos deles: educação, moradia...
direitos fundamentais que já foram violados antes.
Quando eles cometem atos infracionais e aí as políticas
chegam até eles, já tinham sido vítimas de violações antes. O sistema de garantia
de direitos das crianças e adolescentes previsto no estatuto ainda tem de
avançar muito na área preventiva. A área socioeducativa – quando o adolescente
já cometeu ato infracional – tem mais visibilidade, tem apelo maior que a
preventiva. A ideia da intervenção depois é muito mais presente no planejamento
e execução do que a política preventiva.
Que desafios os
jovens infratores têm de lidar no dia a dia?
O que se percebe é um desafio grande na política de
atendimento devido à ideia de um individualismo heroico. Muitos dos
adolescentes que estão em medida enfrentam em seu dia a dia desafios muito
complexos, imensos, que são questões sociais, não individuais. E o tempo todo é
demandado deles que resolvam essas contradições de forma individual, não como
grupo, não na dimensão política, onde seria de fato possível resolvê-las, mas
ali no seu cotidiano.
Ele tem de voltar para a escola porque o juiz determinou,
porque está no estatuto, só que ele não se identifica com a escola e esta não
se identifica com ele. E é ele que vai viver isso no dia a dia, a angústia de
estar em um lugar ao qual ele não se sente pertencente, de um conhecimento que
muitas vezes não se torna possível para ele, de um processo que ele vai sofrendo de
exclusão, que o desestimula. E tudo isso é vivido por ele, individualmente, quando
para ser resolvido precisava ser discutido de forma para além do caso
individual. E todo um investimento que é feito, em muitos momentos, dá essa
impressão de que o adolescente pode sozinho resolver problemas que são sociais.
E ele é um adolescente.
A senhora acredita
que se cobra demais de quem já sofreu várias violações?
Para nós, é difícil perceber o quanto o dia a dia deles é
complexo, tenso, e muitas vezes envolve situações de risco à integridade
física, à própria vida deles. Apostar neles como aqueles que serão única e
exclusivamente capazes de resolver essa situação talvez seja uma aposta
complicada. É extremamente tenso pra ele, uma pessoa em desenvolvimento, que
não é adulto ainda, mas está em um momento de passagem de fechar a infância e
entrar na vida adulta.
O que é cobrado dele muitas vezes é demais, por conta do que
ele está vivendo. Muitos adolescentes sentem essa pressão, essa angústia, têm
contradições que surgem com a violência. Muitos deles sofreram violência
policial, então o dia a dia deles é muito difícil. Muitos deles não têm acesso
ao direito à moradia. Têm dificuldade com acesso à escola, à saúde... Vários
direitos fundamentais da Constituição não são assegurados a eles. E na hora da
medida socioeducativa, cobra-se deles.
Eles vivem com isso: não se sentem cidadãos plenos, com
acesso pleno aos direitos constitucionais. Espera-se que o indivíduo seja um
herói. Esse conceito está presente na própria política, no sistema nacional de
atendimento socioeducativo. É um conceito chamado de protagonismo juvenil: como
ser protagonista de sua história em um contexto com tantas contradições?
A que direitos
direitos básicos os jovens infratores deixaram de ter acesso?
São direitos fundamentais como direito à moradia, por
exemplo. Alguns adolescentes que entrevistei moram em cortiços com a família:
ela inteira num quartinho escuro, sem ventilação, em moradias precárias,
favelas, barracos. A escola não aparece como direito, mas como dever, que o
juiz determinou. Eles não veem a escola dessa forma. O que se pode esperar de
indivíduos que não veem a escola como direito, mas como dever? Isso não deve
ser discutido em casos individuais, mas enquanto política. A saúde aparece como
uma obrigatoriedade em fazer um acompanhamento psicológico, porque eles fazem
uso de uma droga, de alguma substância. Isso não é percebido deles como uma
demanda deles, não parte deles mas é imposto a eles fazer terapia. Mais uma vez
algo que é um direito acaba se tornando uma obrigação. O desafio é: como é
possível pensar em cidadãos que vão ser resultados deste processo?
Que quadro a senhora
encontrou ao dialogar com os jovens que fizeram parte do estudo?
Um dos grandes desafios é o de integração das políticas. O
que mais me chamou a atenção é a dificuldade de reinserção na escola. Mas aí é
um desafio que não é exclusivamente do governo municipal. Acho que é maior, que
tem de ser discutido de forma mais ampla, com os governos federal e estadual,
porque é uma proposta que está no estatuto. A determinação de que o adolescente
volte para a escola muitas vezes vai na sentença judicial. Se está afastado,
que ele volte, e se não está, que ele permaneça. Sete dos jovens pesquisados
apresentavam um perfil de defasagem escolar de mais de dois anos. Eles estavam
muito atrasados. O atendimento não conseguia, muitas vezes, superar essa
dificuldade, que é estrutural, de perceber o adolescente não como culpado de
tudo que dá errado na escola. É um desafio grande. Era uma das grandes questões
no atendimento, que mobilizava os orientadores, os adolescentes, os
coordenadores das ONGS, que faziam atendimento, conseguir vagas para os
adolescentes nas escolas. As escolas não têm interesse em recebê-los. Elas os
recebem com dificuldade, e eles acabam sendo constantemente alvos de processo
de exclusão da escola. Seja pela defasagem, porque acabam sendo retidos, e
ficando no mesmo ano várias vezes, e isso acaba desestimulando a vida escolar
deles, seja porque eles simplesmente não conseguem ser matriculados, no momento
da liberdade assistida. É o desafio da escolarização.
Não há ainda uma proposta pensada pra enfrentar esses
problemas de exclusão da e na escola. O que se faz é tentar cumprir a
determinação do juiz de tentar matricular o adolescente na escola, e isso gera vários
conflitos. Não é só a escola que não o quer, mas ele também não se sente
pertencente àquele espaço, que seria o grande espaço – ao meu ver – de abertura
pra ele de possibilidades fora da vida infracional. A escola é o espaço
fortemente indicado pra abrir outras possibilidades de projeto de vida e de
futuro.
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