28 de junho de 2008

Carta Aberta sobre a greve dos professores estaduais

Reproduzo abaixo um texto recebido por e-mail e que merece divulgação.


Aos alunos, aos seus responsáveis e à comunidade.
As atuais circunstâncias do ensino público levam uma parcela significativa dos professores a mais uma greve. Por meio desta carta aberta, venho esclarecer algumas questões, tomar posição como professor e assumir publicamente responsabilidades que me cabem como membro do setor público.
Antes de tudo, cabe tornar claro que, como funcionário público, minhas obrigações e responsabilidades são com a comunidade na qual vivo e pela qual trabalho, sempre tendo como horizonte a realização de suas necessidades e desejos, em uma relação de construção democrática que sempre deve levar em consideração aquilo o que pensam pais, alunos e demais professores. No momento em que um governo ou qualquer dirigente coloca projetos
pessoais ou de seu grupo à frente do interesse público, agindo de forma autoritária e anti-democrática, violentando os preceitos mais básicos da vida democrática em sociedade e do respeito à diversidade de opiniões, idéias e culturas, então os vínculos de obrigação do funcionário público com a estrutura de poder perdem sua legitimidade, devendo este voltar-se em direção às raízes sociais da instituição. Nesse caso, voltar-se ao próprio conjunto dos professores, de seus alunos, das famílias e da comunidade, que partilham direta ou indiretamente o futuro da escola. E este é o espírito que permeia esta carta.
A decisão de entrar em greve nunca é fácil. Aqueles que escolhem esse caminho o fazem por julgarem que outras tentativas de solução não são possíveis, e que a gravidade é tamanha que o custo da greve é menor do que o de manter as coisas no rumo em que estão, sem tomar qualquer atitude. Com esta greve não é diferente. Para entender porque chegamos a esse ponto é preciso olhar o que aconteceu com o ensino público nos últimos tempos.
Devemos considerar a existência de um já antigo processo de degradação da qualidade do ensino. Embora as razões dessa degradação sejam várias, devemos chamar a atenção para dois processos principais, ambos frutos de decisões tomadas ao longo dos últimos 14 anos de governo de um mesmo grupo político, e que, completamente equivocadas, contribuíram de forma decisiva para o atual estado de calamidade.
A redução dos investimentos em educação é seguramente o ponto de partida da grave crise que hoje atinge as escolas públicas. Com a lógica de limitar os gastos, evitou-se o que era necessário, a contratação de professores e funcionários, assim como o reajuste salarial. Duas consequências surgiram dessa política de contenção de gastos: primeiro, a falta de professores aumentou o número de alunos por turma, e hoje é muito raro encontrar uma turma com menos de 40 alunos; em segundo, os professores foram obrigados a aumentar o número de aulas por semana, trabalhando em várias escolas, públicas e privadas, para compensar o salário baixo e manter o padrão de vida. Mais aulas com mais alunos. Essa sobrecarga de trabalho teve consequências profundas na qualidade do ensino e na vida do professor e de seus alunos. A atenção ao desenvolvimento e ao aprendizado deixou de existir como deveria, pois como é possível ao professor conhecer e acompanhar algo entre 400 e 640 alunos? Como esse professor irá corrigir as provas? Como comentar todas as redações e dar a atenção necessária para que cada aluno supere suas dificuldades individuais? Não é possível, como todos sabem, menos a Secretaria da Educação! O professor sobrecarregado não consegue atingir seus objetivos e afunda em frustração, seu ritmo de trabalho o consome, e o preço pago é sua saúde: perda de voz, crises nervosas, depressão, pressão alta, úlcera, gastrite... o repertório de doenças é extenso, e nem todas perceptíveis à primeira vista. O remédio que boa parte encontra é “reduzir a dedicação”. As aulas são dadas com menos energia, os alunos já não recebem tanta atenção, as atividades são corrigidas de forma muito rápida, fala-se somente o necessário, pede-se muita cópia, seja do livro, seja da lousa... As aulas perdem qualidade, a vida do professor também.
O segundo processo decisivo para a destruição da escola pública foi a implantação do regime de progressão continuada, transformada em “aprovação automática” pela política dos governos do Estado. Em seus princípios é absolutamente correta a idéia de que o aluno não deve ser reprovado por problemas de desempenho, afinal a escola serve para ensinar e desenvolver, nada mais justo que cada dificuldade seja corrigida imediatamente, sem a necessidade de perder um ano inteiro, sem repetir inutilmente o estudo de conteúdos já vistos e sem marcar o aluno com a reprovação. Porém isso exigiria a possibilidade de maior acompanhamento do aluno, com a criação de aulas de apoio e a contratação de professores auxiliares para dar esse suporte a mais. Como vimos, foi justamente o contrário. O número de professores é mínimo e as condições de acompanhamento do aluno inexistentes. A progressão continuada transformou-se em uma grande mentira, os alunos passaram a ser aprovados de um ano para o outro sem aprender o que deveriam. E esse é um crime (!) que atinge grande parte dos alunos: o seu direito à educação foi roubado, transformado em uma mentira. O aluno não apenas deixa de aprender como é cruelmente lançado em um vazio, pois é incapaz de acompanhar as aulas de um estágio mais avançado. Como compreender a matéria da 8a série se ele não aprendeu o que deveria ter aprendido na 7a e na 6a séries? Como aprender uma aula de física sem dominar o básico da matemática? O aluno fica a cada ano mais para trás e abandonado, não conseguindo acompanhar as aulas.
Dois resultados são imediatamente percebidos no comportamento dos alunos. De um lado, a irresponsabilidade, pois não importa o que o aluno faça ou não, ele sabe que não precisa estudar para completar os ciclos de estudo; de outro, a humilhação, a raiva e a descrença na escola; jogado em um vazio, incapaz de entender as aulas, é natural que passe a conversar e a ignorá-las, como alguém cansado de ouvir uma conversa em um língua que desconhece. Como uma “bola de neve”, tudo isso se acumula de um ano para o outro, com os alunos compreendendo cada vez menos e desinteressando-se cada vez mais. Hoje a imensa maioria dos alunos das turmas de ensino médio são incapazes de acompanhar as aulas de matemática, geografia, filosofia, etc.
A conclusão disso tudo é um completo caos em sala de aula. Os professores já não conseguem ensinar, os alunos não conseguem aprender. Todas as dificuldades se somam e a escola encontra-se praticamente falida, incapaz de cumprir sua função social.
O desastre levou o governo do Estado a tomar medidas. Entretanto, no lugar de admitir a responsabilidade das administrações anteriores – de seu próprio partido – e atacar os problemas principais citados, a falta de investimentos e a “aprovação automática”, preferiu arrumar outros culpados, os professores! E desprezando a experiência de quem vive diariamente a escola pública, no contato direto com a comunidade, nas atividades de sala de aula, assim como desprezando também a opinião dos pais e alunos, assumiu por si mesmo a tarefa de “melhorar” o ensino, de forma unilateral, particular e anti-democrática, ignorando os problemas reais, culpando os profissionais e ignorando sua própria responsabilidade como origem da maior parte dos problemas que enfrentamos.
Como primeira medida, centralizou-se todo o poder e as decisões na Secretaria da Educação, elevando a secretária ao status de “portadora da verdade” sobre a escola e sobre suas soluções, e onde técnicos, burocratas e acadêmicos, muitos dos quais jamais pisaram em uma sala de aula de uma escola de periferia, simplesmente desprezam e ignoram os profissionais da educação que efetivamente conhecem os problemas e possíveis soluções a serem tentadas. A partir de números e estatísticas, que o tecnocrata ignorante da realidade precisa produzir a partir de incontáveis provas e avaliações, mas cujos resultados são amplamente conhecidos e óbvios a qualquer professor com o mínimo de experiência na educação pública, são tomadas medidas sem qualquer discussão com os professores, pais, alunos e comunidade. Ao modo dos piores regimes autoritários, em nome da eficiência se ignora e se contraria todos os princípios básicos da educação e da democracia, jogando no lixo a própria lei que versa sobre a construção participativa da escola.
Mas que idéias são essas que o governo aplica sem consultar ninguém e sem legitimidade? As de que a escola se assemelha à uma fábrica, de que os alunos são produtos para atender ao mercado de trabalho que pede mão-de-obra barata e genérica – nada de médicos ou engenheiros -, de que o professor deve ser um operário barato e de fácil reposição, que cumpra ordens sem questionar e que ensine seus alunos a se comportarem aceitando passivamente tudo o que é imposto. Em resumo, o lugar da escola pública não é o de formar pessoas conscientes ou um trabalhador qualificado que possa trabalhar em hospitais, indústrias ou como pesquisador de alta tecnologia, para isso existem as escolas privadas onde estuda a classe média e alta. Na escola pública, para as pessoas de baixa renda, oferece-se um ensino de baixa qualidade, barato e precário. Com apostilas de péssima qualidade e conteúdo questionável, que infantilizam os alunos, onde não existe o desenvolvimento do senso crítico, apenas aprende-se uma doutrina elaborada por quem ocupa a Secretaria da Educação e representa esse governo. Um ensino único e uniforme, que destrói a diversidade de pensamentos e de culturas, que joga a formação e a liberdade dos professores no lixo. O ideal imposto é o do adestramento de um trabalhador genérico para o setor de serviços. O aluno deve aprender a ler tabelas, interpretar gráficos, lidar com informações, usar o básico de um computador, porque é esse tipo de habilidade que “o mercado exige” da população mais pobre, que terá seus lugares reservados como serventes, auxiliares, vendedores, repositores de mercadorias e por aí afora. É impensável uma formação básica que permita a esse aluno cursar uma faculdade mais especializada. Esses empregos são poucos, e já estão reservados para a classe média-alta, que pode pagar o custo maior dessa educação. Quando um ou outro “talento” se sobressair em meio ao cenário de extermínio do ensino público, esse será “pescado” por programas especiais ou cursos técnicos, que concederão um certificado que o identificará, que, como quem separa o joio do trigo, o diferenciará dos outros alunos, que serão jogados na vala comum do ensino de baixa qualidade. E, assim, a desigualdade social se reproduz e perpetua.
Quanto ao professor, esse é transformado em bode expiatório de todas as mazelas, é amarrado e amordaçado. No lugar do investimento em condições de trabalho, sobrecarrega-se ainda mais suas atividades, já impossíveis. Decretos governamentais não perguntam o motivo dos professores faltarem e quantos o fazem. Limitam as faltas sem qualquer critério, prejudicando aqueles que realmente têm problemas sérios. No lugar de prover melhores condições e regras para que cada professor se dedique a uma única escola e adapte-se, proíbem-se as transferências, mesmo que seja impossível ao professor continuar fazendo seu trabalho na unidade em que se encontra. No lugar de reduzir o trabalho e aumentar a qualidade e a dedicação, impõe-se uma sobrecarga e um ritmo de trabalho cada vez mais irreal e insano, deteriorando ainda mais as condições de trabalho e jogando para fora da instituição os melhores e mais jovens professores, entre os quais aqueles recentemente concursados e completamente desiludidos. Hoje, pela falta de condições de trabalho, a imensa maioria dos professores pensa em abandonar as escolas, entre os quais me incluo, apesar de saber que aqui seria o meu lugar.
E aqui chegamos à conclusão. Talvez essa greve seja o último suspiro de uma instituição falida e destruída. Uma resposta tímida a um processo de segregação das populações mais pobres, que antes confiavam na escola como forma de transformação de suas vidas, mas que transformou-se apenas numa forma de determinar uma posição subordinada dentro de uma sociedade historicamente desigual e injusta. Não, o aluno pobre jamais disputará as vagas em publicidade ou engenharia em pé de igualdade, não no que depender da escola pública. E as classes média e alta, com seus filhos estudando em escolas particulares, pouco se importam e se fazem de desentendidas. Afinal, neste país, por mais que reclamem, paga-se barato pelos privilégios que a desigualdade proporciona em uma sociedade economicamente selvagem. Frente a isso, acredito que nesse momento o mais importante ensinamento que um professor possa dar ao seu aluno, e que recupera um mínimo de dignidade para ambos, seja o de descruzar os braços e enfrentar a correnteza, de encarar o futuro com olhos abertos e atentos, e de, se for derrubado, que o seja com a cabeça erguida.

São Paulo, 25 de Junho de 2008
Luciano Nunes Malheiro
Escola Estadual Tarcísio Álvares Lobo
Professor Efetivo da Rede Pública do Estado de São Paulo
Disciplinas de Filosofia e História

Nenhum comentário: