9 de fevereiro de 2012

A ESCOLA ÀS ESCURAS

Reproduzimos abaixo a entrevista concedida por Júlio Groppa Aquino em 2005 para a Carta Capital. Aquino coloca o dedo na ferida e afirma que só tem visto a Educação piorar no Brasil nas últimas décadas (infelizmente, a afirmação continua plenamente válida). Algumas de suas afirmações merecem alguma ressalva, mas isso deixaremos para a inteligência dos nossos leitores.


A ESCOLA ÀS ESCURAS
O professor Julio Groppa Aquino dispara contra mitos, modismos e farsas que assolam a educação brasileira
Por Flavio Lobo

"É preciso ter coragem para desmascarar esse estado lamentável das coisas na educação, seja particular, seja pública.” O educador Julio Roberto Groppa Aquino não fica apenas na convocação: sua análise sobre a escola brasileira é demolidora. Governo, empresários do setor, pais, professores, mídia especializada… Exceto pelos maiores interessados, e prejudicados, as crianças e adolescentes, nenhum grupo envolvido no processo é poupado. Aos 42 anos, Groppa assegura que, desde que começou a trabalhar com educação, há duas décadas, só viu a situação piorar.

Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, com doutorado feito na própria USP e pós-doutorado pela Universidade de Barcelona, Groppa é autor de quatro livros sobre o cotidiano escolar e co-autor de vários outros, entre os quais Em Defesa da Escola (Papirus, 2004). Além da docência na universidade, lecionou no ensino básico e hoje assina a coluna Quadro Negro, na revista Educação.

Nesta entrevista, Julio Groppa expõe o que considera a escuridão reinante no quadro escolar brasileiro. E não se furta a nomear alguns dos protagonistas do “desastre” educacional do País, resultante da manutenção de “mitos”, de palavras de ordem vazias, descaso, farsa e abandono.

CartaCapital: Quais são os maiores mitos em torno da escola brasileira?
Julio Groppa: O maior deles é o de que a educação seria o grande instrumento de ascensão social. Acredita-se nisso há séculos. A idéia de que a educação faz a diferença é a base do pensamento moderno. A ciência, a tecnologia, o progresso, tudo isso tem a ver com a idéia de educação como pilar. Tanto a esquerda quanto a direita repetem que a educação dos pobres melhora a vida deles próprios e do País. Parece-me um mito já de largada, porque a gente não vê isso acontecer concretamente aqui. O grande potencial de transformação social da educação, seu papel fundamental para uma melhor distribuição de oportunidades e renda, que ela desempenha em outros lugares, no Brasil não se realiza. A escola brasileira é cuspida e escarrada a realidade brasileira, com todas as suas injustiças. E não se trata de ela reproduzir a realidade brasileira: ela é a realidade brasileira. Há um mito de que existem ilhas escolares que são o luxo, associadas às escolas privadas, e, em volta, um grande aterro sanitário público onde depositamos as crianças pobres – porque, a rigor, as escolas se transformaram em lugares onde jogamos as crianças e depois de oito anos fazemos testes para ver no que deu. Só poderia mesmo dar nesse desastre que é a educação pública brasileira.

CC: Mas a idéia de que existem oásis de “luxo” educacional faz sentido?
JG: Não. As escolas privadas transformaram-se em lugares de mero adestramento intelectual. Não há uma vírgula de diferença entre escolas de proposta x ou y. Em geral, todo o trabalho sustenta-se na idéia de transposição da informação enciclopédica que cai no vestibular. As escolas privadas tornaram-se treinadoras de prestadores de vestibular. E a expressão máxima disso são os cursinhos, essa excrescência da educação brasileira, cujos profissionais gozam, indevidamente, da fama de serem os melhores professores. Os cursinhos são tão-somente uma caricatura da escola privada. Ensinam o quê? A passar em vestibulares, que cada vez mais vão se sofisticando conforme o objetivo de excluir a grande massa da universidade pública.

CC: Mas há escolas que dizem não dar prioridade ao vestibular.
JG: É balela. Elas estão preocupadas, sim. O mercado das grifes escolares é igual ao da Daslu. A classe média compra como se fosse viagem, carro, celular... Chegam a pagar mensalidades de R$ 1,5 mil, R$ 2 mil... Este é o único país onde a mercantilização da escola é tão generalizada e explícita. No resto do mundo, a grande maioria, inclusive a classe média, estuda na rede pública. Só a elite da elite freqüenta os seus colégios próprios. Existem 2 mil escolas privadas na cidade de São Paulo. Tirando as 20 que são da tal elite, as outras 1.980 não se diferenciam da escola pública, a não ser no controle sobre o professor. Lá, ele pelo menos comparece. Muitos desses profissionais, inclusive, também trabalham na rede pública. Faltam na escola pública, mas não na particular. Não que, em geral, os salários sejam melhores num lugar que no outro. Há escolas nas quais o professor ganha menos que a mensalidade paga por um único aluno. Mas, se começa a faltar na particular, o professor perde o emprego. É a única diferença.

CC: Em termos de conteúdo não há diferenças?
JG: As escolas são lugares abandonados do ponto de vista intelectual. Nisso a escola privada e a escola pública não têm diferença significativa. A estratégia do abandono dos alunos da escola pública tem a sua contrapartida na teatralização da escola privada. Em ambas, pouco de inteligente se constrói. Dialogamos muito pouco com a cultura acumulada, sempre recomeçamos do zero. Uma professora espanhola que esteve aqui fez uma síntese da diferença entre a cultura escolar brasileira e a européia. Ela disse que, ao fazer uma comemoração, eles escolheriam o lugar mais antigo, de maior significado histórico. Aqui, escolheríamos o mais novo, o da moda. Nada tem lastro, continuidade. E é a educação que deveria promover esse lastro. É preciso pensar a educação com maturidade. Ao contrário disso que está aí: por um lado, um discurso espontaneísta, desarticulado e infantilizado. Do outro, ações “pragmáticas”, norteadas pela idéia de que educar bem é assegurar vaga na universidade. Meus alunos chegam à USP e não sabem escrever, raramente lêem. Seriam reprovados num ditado.

CC: Para mudar isso, não seria preciso exigir o cumprimento de metas básicas, como a alfabetização dos alunos até uma certa idade?
JG: Sim, precisamos de pactos éticos, políticos, civis e profissionais. O que você chama de metas para mim são princípios que têm de ser comuns aos educadores, antes de tudo. Vou dar um exemplo. No início da gestão do PT na prefeitura de São Paulo (no governo de Marta Suplicy), eu participei de um levantamento. As 900 escolas municipais de ensino fundamental foram divididas em 13 regiões e eu fui o responsável por uma delas. Conversamos com alunos, professores e funcionários para saber o que estava acontecendo e, em seguida, propor ações. Qual foi o problema que se impôs antes da abordagem de questões pedagógicas estruturais? O absenteísmo docente. Isso precisa ser dito: não conheço uma única escola pública que conte, em apenas um dia do ano letivo, com todos os seus profissionais presentes. Com esse diagnóstico, fizemos uma reunião com todas as escolas e eu propus um pacto de cem dias sem faltas. Fui vaiado por praticamente todos que lá estavam. Veja que eu estava defendendo um princípio. Os alunos têm o direito de ser atendidos, e da melhor maneira possível. Se os mesmos índices de faltas acontecessem na saúde, os hospitais seriam incendiados. Este, aliás, é outro engano: diz-se que a saúde e a educação do País vão mal. Mas não dá para comparar. A saúde funciona infinitamente melhor do que a educação. Se médicos ou enfermeiros faltam, a cobrança é mil vezes maior. É só um exemplo de um princípio essencial, o do atendimento sistemático. Na rede pública de educação, esse pacto nós já rompemos há muito tempo. Perdemos por WO.

CC: A tragédia da criança que vai à escola e nem se alfabetiza direito deveria ser vista como a do doente que morre na fila?
JG: É isso. Ela morre na fila, de véspera. Mas ninguém se escandaliza com essa aberração. Vamos criando um monte de justificativas para naturalizar esse desastre. E a educação brasileira segue, impávida, “matando seus pacientes”.

CC: O que houve depois da vaia?
JG: Fomos depostos. Caiu o secretário, mudou tudo, zerou de novo. Um clássico do amadorismo reinante. A secretária seguinte nem sequer sabia que tinha sido realizado esse trabalho, que proporcionou um extenso diagnóstico da educação municipal. O governo do PT na prefeitura de São Paulo foi um exemplo de como a gente sempre começa do zero. Foram três secretários de Educação. Formalmente, quatro, mas um deles ficou uma semana no cargo. Isso não significa que ter um secretário só é sempre bom. Veja quem é o responsável pela educação hoje na cidade: um médico, cirurgião. O que podemos esperar de alguém que, suspeito eu, entende muito pouco de educação básica? (O então secretário da Educação do município de São Paulo era José Aristodemo Pinotti).

CC: Segundo levantamento citado no livro A Escola Vista por Dentro, de Simon Schwartzman e João Batista Oliveira, 77% dos professores do ensino fundamental público culpam o desinteresse dos alunos pela alta repetência. Essa é uma das teorias que o senhor mencionou?
JG: Claro. É como dizer que o problema da saúde são as doenças, e o da Justiça, os delitos. “Se fôssemos um povo menos criminoso, a Justiça seria melhor. Se fôssemos mais interessados em educação ou, em outras palavras, menos ignorantes, a educação seria melhor.” É a lógica dos mitos. E esse talvez seja o maior deles: o de responsabilizar o alunado. Não faz o mínimo sentido, mas está generalizado não só entre os profissionais da educação, como também na opinião pública, que ratifica esses clichês, esses abusos cometidos contra os jovens.

CC: E em relação às particulares, também não falta cobrança?
JG: As escolas privadas são a cara da elite brasileira. Fazem parte do seu “pacote existencial”: academia, shopping, condomínio fechado, escola privada. Elas vendem aquilo que a elite quer: uma farsa com fachada de excelência. O processo de desinstitucionalização escolar, que na escola pública assume a forma de deserção, na escola privada confirma-se como fraude pedagógica. Não há o mínimo de supervisão, de controle. O ensino particular é um Velho Oeste. Tem jurisdição própria e transparência zero. E não há debate algum sobre isso. A escola privada, no Brasil, está acima de qualquer suspeita, como se seus resultados fossem sempre ótimos. E a imprensa em geral só faz alimentar a mistificação, como o ranking das melhores escolas privadas feito pela Vejaem 2001. Em meados deste ano, a Folha de S.Paulo publicou um caderno especial intitulado Colégios, em que mostra o cotidiano das escolas campeãs do vestibular. E o que lá se vê? Hiperconcorrência entre os alunos, “baias” individuais, avaliação frenética, vigilância digital, exclusão sistemática dos “mais fracos”. Um dos destaques é o Colégio Objetivo, que pertence ao “barão” do modelo escolar vigente, o senhor (João Carlos) Di Genio. Não dá para acreditar que essas “corporações” espalhem impunemente seus horrores pedagógicos e que a imprensa seja servil a isso tudo. É preciso ter coragem para desmascarar esse estado lamentável das coisas na educação, seja particular, seja pública.

CC: Como a situação pode ser tão ruim se tanto se diz que a educação é cada vez mais valorizada? Fala-se sem parar em “era do conhecimento”, “educação continuada”…
JG: Pois é. Estamos cercados desses repetidores midiáticos, como o Gilberto Dimenstein. Gente que prega o “aprender a aprender”, “aprender a fazer”, “aprender a ser” etc. Clichês que pouco significam quando confrontados com a prática escolar. A educação exige uma certa solidez clássica. E não me venham dizer que as novas gerações não estão interessadas nisso. Elas são a cara do que a gente oferece para elas. Damos alfafa e reclamamos da falta de massa crítica.

CC: Qual é o “alimento” que falta?
JG: O que é o mundo se não gerações contando histórias para as gerações subseqüentes? As histórias dos que nos precederam – aquilo que chamamos de conhecimento. Mas não queremos mais contar história alguma para as novas gerações e, pior, queremos que elas criem sua própria história. Isso é deserção, um crime educacional. As transformações que chamamos de história são respostas ao que foi feito pela geração anterior. Padecemos de uma amnésia cultural sem precedentes. Hoje importa ser “inovador”, “empreendedor”. É insuportável essa tolice empreendedorística que toma de assalto o País, a mídia, as escolas. A geração dos pais e professores, dos educadores, insiste em não abandonar o palco da juventude. Os mais novos têm de lutar muito com os “eternos jovens” por um lugarzinho nesse palco, que deveria ser seu. Há gente demais querendo ser “jovem”.

CC: Nelson Rodrigues clamava aos jovens: “Envelheçam!” Hoje a súplica vale para pais e professores?
JG: Sem dúvida. Se não, quem narrará as histórias que merecem ser recontadas adiante? Você não imagina o que é controlar uma manada de crianças ou adolescentes com os hormônios explodindo. Qual a moeda de troca? É preciso oferecer um pouco da serenidade do velho mundo. Isso os acalma e dá a possibilidade da liberdade diante da opressão da juventude. O educador lhes dá a oportunidade de envelhecer. Ganha em troca um pouco da vitalidade deles e, com ela, a possibilidade de sobrevida. Uma troca justa.

CC: Mas essa imaturidade que domina a educação não é coerente com uma sociedade conservadora como a brasileira? A “eterna juventude” e o renascer do zero não são formas de simular o novo sem sair do lugar?
JG: Exatamente. É a morte do espírito educativo, de seu poder de transformação. Praticamos uma espécie de educação self-service, ou prêt-à-porter, antagônica à idéia de educação como conservação do mundo. A Hannah Arendt defende o aspecto conservacionista da educação, muito distinto do conservadorismo. Desde que trabalho com educação, duas décadas já, só a vi piorar no Brasil. E vai seguir ladeira abaixo se não mudarmos a relação que temos com as novas gerações, hoje marcada por rivalização e descaso. Ao rejeitar o conservacionismo, a nossa prática educacional torna-se, na verdade, ultraconservadora.

CC: Apesar da realidade da educação brasileira, ouvimos e lemos autoridades e especialistas a desfiar boas e belas intenções. Não há muita “poesia” para pouca lição de casa?
JG: Na penúria em que nos encontramos, pode faltar pão, mas não o circo. Esse é o efeito principal da onda de auto-ajuda pedagógica que assola as escolas atualmente. Um dos campeões do palavrório é o atual secretário da Educação do Estado de São Paulo (Gabriel Chalita). E olha que as escolas estaduais paulistas estão em situação ainda pior que as do município. Outro “poeta” da educação é o Rubem Alves, autor bastante reconhecido entre os educadores e na mídia. Eles que me perdoem, mas eu considero essa atitude leviana, para dizer o mínimo. A situação é muito grave para que possamos arrancar aplausos fáceis, fazer correr lágrimas comovidas de olhos mais sensíveis – ou míopes – e ter o sono dos justos.

Fonte: Carta Capital, 15/10/2005

2 comentários:

mimi sato disse...

oi MAURO
que bacana o seu blog, fiquei um tempão lendo as notícias, aliás, muito boas.

parabéns!

sou do fórum de direitos humanos de MT - muito obrigada pela sua adesão ao manifesto indígena.
http://direitoshumanosmt.blogspot.com/

um abração

Mauro Bartolomeu disse...

Obrigado, Mimi. Quanto aos indígenas, essa luta também é minha. Grande abraço!